Uma breve Historia dos indigenas do Brasil - Page 8 - A colonização das Américas - A vida e os costumes dos povos indígenas do Brasil, seus destinos, sua história - a colonização do Brasil e o contato entre brancos e indígenas 3 De fato, a sua cultura material parecia inexistente. Mas esses mesmos colonizadores não souberam ver, e nunca quiseram admitir, ao longo de cinco séculos de dominação, que os indígenas possuíam uma rica cultura espiritual, uma cosmogonia e mitologia complexa, cada tribo tendo sua própria 2 . Ao contrário do que pensavam os missionários dos primeiros séculos, os indígenas eram convencidos de possuir uma alma. Certos povos tinham desenvolvido crenças escatológicas ou criacionistas, que falavam de um fim dos tempos, ou de um dilúvio, ou de um fogo purificador, e também de “um paraíso”. Se for verdadeiro que as tribos indígenas do Brasil não tinham, na maioria dos casos, nem “rei” nem “governador”, é verdade também que praticamente todas tinham um pajé, um xamã; era esse personagem o homem primordial e essencial da tribo ou do grupo. O xamã é um "padre" e um "terapeuta"; ele mantem uma relação com os espíritos; ele está presente em praticamente todas as sociedades ameríndias e siberianas (de onde a palavra “xamã” é originária: Шаман), bem como no Tibete, entre outros. Os xamãs têm a capacidade de ir e vir entre mundos paralelos, o mundo dos vivos por um lado, e por outro lado os mundos celestiais, terrestres, subaquáticos, subterrâneos. Para as tribos ameríndias, o diálogo que o pajé ou xamã podia estabelecer com o mundo dos espíritos (espíritos da floresta, dos animais, das plantas, almas dos defuntos) era essencial. Para ter acesso aos poderes sobrenaturais, o xamã devia passar por uma longa e penosa iniciação (Davi Kopenawa & Bruce Albert; A Queda do Céu, Companhia das Letras, 2015), seguida de longos períodos de continência e de proibições diversas, notadamente alimentares. Os missionários portugueses não demoraram a identificar o “inimigo”: como estes xamãs podiam “ver”, se mesmo os padres, os monges, e até o Papa apenas podiam “crer”? A sociedade indígena não era governada unicamente pelo poder do xamã, mas também por regras, tabus, preceitos e numerosos rituais que ritmavam a vida do grupo. Foi isso que tentei descrever no meu trabalho, utilizando da melhor maneira possível as numerosas e enriquecedoras publicações acadêmicas as quais pude acessar via internet, e também lendo e relendo os livros que possuo sobre o assunto (Parte V). Nenhum povo ameríndio possuía nem livros nem bibliotecas; esses povos, contudo, tinham acumulado todos os conhecimentos necessários a sua sobrevivência, e o seu conhecimento da natureza era imenso; souberam preservá-la durante milênios, e continuaram a servir-se dela de maneira equilibrada até os tempos de hoje. Nunca nenhum bisonte, nenhum peixe, nenhum ovo de tartaruga, nenhuma capivara tinha faltado para sua alimentação. Mas essa situação de equilíbrio ecológico será quebrada rapidamente com a chegada dos brancos e sua penetração para o interior das terras. Isso acontecerá em todas as partes do continente americano. A conquista e exploração do continente ameríndio foi uma das mais mortíferas da história, pela sua duração e pela desigualdade dos meios de luta. As três nações européias tentaram, por todos os meios, expulsar os autóctones das terras conquistadas; foram perseguidos, aniquilados ou escravizados. Durante o primeiro século de contato, a população nativa foi dizimada pelas doenças trazidas pelos europeus (varíola, tifo, gripe, difteria, sarampo, entre várias outras), doenças contra as quais os indígenas não tinham defesa imune. Os conquistadores logo constataram esse fato, e não vacilaram, em especial os espanhóis, em enviar cães contaminados para ajudar ainda mais em propagar essas doenças. Se na América do Norte as guerras contra os índios terminaram há mais de um século, no Brasil a confrontação prolongou-se até o fim do século XX, numa mistura de conflitos armados, de “pacificações” e de evangelizações diversas. Para os indígenas do Brasil, a conquista e a colonização do país resultou na dizimação de 90% da sua população inicial,baseada no ano 1500, 2 Sobre o tema da alteridade (termo proveniente do baixo latim alteritas que significa diferencia) ou “outridade”, ver: Tzvetan Todorov; “A Conquista da América - A Questão do Outro”, 4ª Ed. 2010, 387 págs. Ed. Wmf Martins Fontes. Esta obra apoia-se, historicamente, sobre a conquista do Caribe e do México no curso do século XVI. Porém, o tema da outridade é universal, e foi tratado por Michel de Montaigne jà em 1580 (Ensaios; Livro 1, capítulo XXXI, Dos Canibais). 4 pela perda de 85% das suas línguas, pela aculturação quase completa, e pela destruição dos biótopos de quase todas as tribos indígenas, induzindo frequentemente desnutrição, proletarização e dependência para com a Sociedade Civil e o Estado brasileiro. Menina Wayana 3 , com pintura facial de jenipapo. (Autor da foto: Daniel Schoepf; 1978) (ii) Foi esse destino dos povos indígenas brasileiros, confrontados aos colonizadores lusos, seguidamente à sociedade brasileira, que tentei descrever na parte VI. Foi para escrever esta parte VI que encontrei maiores dificuldades, pois, ao que parece, as “misérias” sofridas pelos indígenas brasileiros durante cinco séculos nunca interessaram ninguém. Tivera muitas dificuldades para encontrar na internet uma documentação séria, em língua portuguesa, sobre os diversos episódios da história dos índios no curso dos cinco séculos de colonização: O que aconteceu com os índios durante a exploração do pau-brasil? Qual foi o impacto da corrida para o ouro do século XVII para as tribos de Minas Gerais, de Goiás e Mato Grosso? O que aconteceu na Amazônia brasileira durante os dois ciclos da borracha, mais particularmente com as tribos da bacia amazônica? O que realmente aconteceu entre as tribos indígenas e as bandeiras? Não, realmente, a história dos índios não interessava muita gente. Há muito tempo, alguém disse, falando do Brasil, que ele era o inferno do negro, o purgatório do branco e o paraíso do mulato 4. Se esta frase peremptória continha, na época, uma boa dose de verdade, pode ser notado que ela não mencionava o índio; parece então que este nunca teve seu lugar na sociedade brasileira, tanto ontem como hoje. Contudo, a partir dos anos 50, o governo brasileiro fez esforços para melhorar a condição dos nativos e primeiros habitantes de seu país. Porém, em certas partes da sociedade, permanece uma visão negativa do índio, feita de preconceitos e rejeição. O “índio” é hoje, como há 500 anos atrás, percebido como um empecilho ao comércio, ao desmatamento e ao extrativismo generalizado do solo e do subsolo, ou simplesmente, à civilização. 3 A tribo Wayana é localizada no Amapá e no extremo norte do Pará, perto das fronteiras com o Suriname e a Guiana Francesa. A população é estimada em 300 no Brasil, 800 na Guiana Francesa e 500 no Suriname. 4 Padre Antonil, jesuíta italiano, (1649-1716). O Padre Antonil era um contemporâneo do Padre Antônio Vieira; ele é o autor de um documento publicado em 1711: “Cultura e opulência do Brasil”, livro considerado como o melhor que foi escrito sobre as condições sociais e econômicas do Brasil no início do século XVIII. Este livro descreve em detalhes os aspectos sociais, econômicos e técnicos da produção do açúcar e do tabaco, da organização e da exploração das minas de ouro, bem como dos pastos e criações de gado no Estado da Bahia, mencionando entre outras a Casa da Torre dos Garcia d’Ávila ((3)). 5 Mas, os índios do Brasil aprenderam a defender seus direitos. Adquiriram, ou receberam terras reservadas e teoricamente protegidas, as chamadas Terras Indígenas (TI). Receberam ajuda e assistência de orgãos governamentais, como a FUNAI e a FUNASA; vários textos legislativos protegem (alguns acrescentarão: “em tese”) os índios, coisas que não existem em nenhum outro país da América do Sul (4). Nos últimos 50 anos a curva demográfica da maioria dos povos indígenas voltou a ser positiva: eram aproximadamente 80-90 mil em 1910, na época da criação do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), perto do desaparecimento definitivo; e cerca de 100 mil em 1950, perdidos numa multidão de 55 milhões de habitantes. A partir dos anos 50, sua população começou a crescer de forma lenta e regular. Em 2010 a população indígena aproximava-se dos 400 mil habitantes, número que não inclui outros 400 mil indivíduos que, segundo o censo IBGE de 2010 se declararam como “índios”, totalmente aculturados, vivendo a moda dos brancos ou “caboclos” das classes inferiores. A seguir, são apresentadas algumas informações relativas ao presente documento: Fontes e referências: Para escrever este pequeno texto, as principais fontes consultadas foram a internet e minha própria biblioteca. As referências, às vezes acompanhadas de curtos comentários, se encontram no fim do documento (págs. 296-315). São cerca 400 referências, das quais cerca de 50 são tiradas do site “PIB Socioambiental” e cerca de 30 do site “Wikipédia” (em várias línguas). Das 320 referências restantes, aproximadamente 220 são relacionadas a teses de mestrado ou doutorado, estudos e comunicações acadêmicas, trabalhos de campo ou relatórios de historiadores, cientistas ou personagens históricos, assim como aos livros consultados. Para realizar esse trabalho, li aproximadamente 18 mil páginas de livros e documentos. Algumas referências, que considerava particularmente interessantes, são assinaladas no texto com os números em negrito e duplo parêntese, por exemplo: ((25)). Os textos assim referenciados são de alta qualidade e representam uma valiosa e ampla fonte de informação sobre o assunto relacionado. Uma breve lista bibliográfica se encontra também no fim do documento. Índios: Para nomear os indígenas, usei diversos substantivos, como: nativos, ameríndios, índios, autóctones, povo, indígenas 5; fiz isso, antes de tudo, para não ser repetitivo demais. O termo “índio” foi primeiro introduzido pela Espanha, quando Cristóvão Colombo, que achava ter atingido as Índias, chamou assim os habitantes do Novo Mundo. No início da colonização do Brasil e até o século XVIII, os portugueses usavam do termo de “gentios”, ou seja, pagãos. Hoje o Brasil nomeia seus nativos, aqueles do passado bem como os do presente, de índios. Da mesma forma, para designar os colonizadores usei dos termos de colonos, portugueses, colonizadores, brancos, europeus; às vezes para não repetir e às vezes para ser mais preciso. Nomes das tribos: Usei a letra inicial maiúscula para nomear as tribos, enquanto o padrão, ao que parece, é a minúscula. Não tendo encontrado nenhuma explicação sobre essa norma, então optei por utilizar a letra maiúscula. Contudo, segui a norma no que diz respeito ao plural dos nomes das tribos, sem o s no final (com a exceção de Tupiniquins, Tupiniquim no singular). Imagens: A maioria das imagens mostradas aqui são geralmente relacionadas ao texto, mas de vez em quando inseri algumas que não são, a exemplo dos três retratos desta introdução. São perto de 5 O termo "indígena" vem do latim indigěna, relacionado com o grego endogenés, que significa “nascido em casa” (Antônio Geraldo da Cunha. “Dicionário etimológico da língua portuguesa”, pág. 433; 2a ed., 1986). 6 240 imagens inseridas no corpo do texto, numeradas com números romanos (por exemplo: xix, xxvii). O crédito fotográfico também se encontra no fim do documento (págs. 315-323). Nota para o leitor brasileiro: Como foi dito anteriormente, o presente texto estava primeiro e principalmente destinado aos leitores europeus, que geralmente têm pouco conhecimento sobre o Brasil e seus indígenas. Por esta razão, alguns trechos poderão parecer elementares ou sem interesse para brasileiros. Por outro lado, acredito que o presente trabalho (que não tem nenhuma pretensão acadêmica) contém muitas informações e detalhes poucos conhecidos dos brasileiros também. Peço desculpas para as numerosas imperfeições gramaticais que podem ser encontradas no presente documento. Contudo, boa leitura. Índios Bororo 6 . Desenho de Hercules Florence (1827), pintor francês que acompanhou a trágica expedição do conde Langsdorff entre 1825 e 1828. (iii) 6 As informações históricas disponíveis indicam que nas últimas décadas do século XIX havia aproximadamente dez mil indivíduos Bororo. Contudo, ao cabo de poucos anos, grande parte sucumbiu aos efeitos deletérios do contato, que incluíram guerras, epidemias e fome. O quadro era tão desalentador que o antropólogo Darcy Ribeiro (“Os Índios e a Civilização”, Petrópolis, Vozes, 1970), ao analisar o censo de 1932, afirmou que o alto grau de vulnerabilidade dos Bororo indicava as últimas etapas do processo de extinção. Entretanto, a partir da década de 70, tem-se observado um crescimento populacional, de modo que, de 626 indivíduos registrados pelo Padre Uchoa em 1979, existe hoje um montante de aproximadamente 1.200, todos localizados no planalto central do Mato Grosso. Os Bororo praticam uma esplêndida arte plumária e são também conhecidos por um rito funerário muito complexo que pode, por vezes, estender-se sobre dois, três, e até seis meses (ver pág.142). Atualmente, a língua bororo é falada por quase toda a população. Até o final da década de 1970, contudo, crianças e jovens sofriam a imposição de um regime escolar da Missão Indígena que proibia que se falasse a língua nativa nas aldeias de Meruri e Sangradouro. Um processo de reavaliação e autocrítica dos salesianos culminou no resgate da língua original e do ensino bilíngue. Assim, em todas as aldeias, a maioria da população fala português e bororo. No cotidiano, a língua falada é a nativa, acrescida de neologismos assimilados do português regional, o qual é acionado apenas nos contatos inter-étnicos (5). 7 I A América do Sul pré-colombiana A escrita apareceu em datas diferentes nas diversas regiões do mundo, geralmente entre 3.000 e 1.000 anos a.C. Se a pré-história de um povo corresponde ao período que antecede o aparecimento da sua escrita, torna-se evidente que a pré-história dos povos ameríndios se prolongou por muito mais tempo do que em outras partes do mundo, considerando que nenhum povo deste continente possuía um sistema de escrita, com a marcante exceção dos Maias. Deste modo, podemos dizer que a pré-história das Américas terminou com a chegada dos descobridores. Isso poderia, por parte, explicar a dificuldade encontrada pelos especialistas para desenhar uma “história” dos povos ameríndios dos últimos milênios pré-colombianos. 1 As migrações para o continente americano A maioria dos arqueólogos e antropólogos defendem a hipótese de uma migração em direção ao continente americano de povos vindos da Ásia pelo Estreito de Bering. Essa migração ocorreu durante a última grande glaciação, que começou há cerca de 80 mil anos e terminou há 12 mil anos. Durante os 70 mil anos de glaciação o nível dos oceanos baixou gradualmente, com dois períodos de mais intensa glaciação, o primeiro entre 48 mil e 38 mil anos a.C. e o segundo entre 23 mil e 12 mil anos a.C., sendo que o auge do período glacial ocorreu há cerca de 19 mil anos a.C. A área mais escura corresponde à nova terra aparecida entre a Sibéria e o Alasca por causa da retirada da água dos oceanos. A área mais clara indica os territórios atuais em torno do Estreito de Bering. (i) 8 Durante esses dois períodos, de aproximadamente 10 mil anos cada um, o nível dos oceanos baixou de 120 a 150 metros devido ao congelamento das águas represadas numa imensa calota polar e da expansão considerável das geleiras continentais. A diminuição do nível dos oceanos fez aparecer uma extensa área de terra entre os continentes americano e asiático. A nova planície emergida, chamada de Beringia, cobriu-se de uma rica vegetação de gramíneas e arbustos, alimento ideal para diversos mamíferos de médio e grande porte como os mamutes, cervídeos, bisontes, tigres-dentes-de-sabre (smilodons), cavalos selvagens dentre outras espécies. Os homens que caçavam estes animais os seguiam sobre as novas terras emergidas e aventuravamse progressivamente até atingir o outro continente, o “Novo Mundo”. Não há consenso entre os cientistas sobre as datas das diversas ondas de migração. Pode ser que uma primeira onda migratória tenha occorido há cerca de 40 mil anos a.C., e que outras seguiram-se entre 23 mil e 10 mil anos a.C. Naquela época, a humanidade ainda vivia na era paleolítica. Neste mapa, a rota 1 de migração é considerada como a mais provável, a rota 2 como uma alternativa possível. O mapa não mostra uma terceira hipótese: a rota iniciando na Europa, passando pela Inglaterra, Escócia, Islândia, Groenlândia, para chegar ao norte do Canadá atual. Para os paleontologistas e outros especialistas, as várias hipóteses não esse xcluem uma a outra. (ii) Várias datações foram realizadas em diversos sítios arqueológicos em todo o continente americano; elas estão ainda sujeitas a controvérsias e interpretações. Por essa razão, prefiro não entrar mais em detalhe no assunto das datas de povoamento das diversas regiões do continente americano em geral e do Brasil em particular. Entretanto, a partir da leitura de várias obras consultadas, chego à conclusão que os primeiros povoamentos no Brasil atual teriam ocorrido aproximadamente entre o décimo quarto e o décimo milênio antes da nossa era, sendo os mais antigos povoamentos localizados ao norte do Brasil e os mais recentes ao sul do Brasil. Estudos demonstraram também a possibilidade de uma segunda rota de migração vinda da Austrália ou do sul da Ásia, implicando numa suposta travessia pelo sul do oceano Pacífico. Essa outra rota de migração teria sido posterior à migração através de Beringia (1). Por fim, considera-se também como possível uma migração marítima vinda do sudoeste da Europa (Espanha e França atuais), passando pelo norte da Europa, seguindo ao longo da calota de gelo do pólo, passando pelo sul da Groenlândia para chegar finalmente ao norte do continente americano ((2)). 9 2 A pré-história dos povos indígenas do Brasil De maneira simplificada, a pré-história do Brasil pode ser dividida em dois períodos: o período pre-cerâmico, também chamado período arcaico e o período das culturas de cerâmicas. Além disso, vale ressaltar o caso especial das culturas Amazônicas. 2.1 O período arcaico O período arcaico se estende aproximadamente dos anos 11 mil a 2,5 mil antes da nossa era. As diversas populações (conhecidas como paleoindios) que povoavam o Brasil nesse período eram caçadores-coletores, que não conheciam a cerâmica e praticavam uma agricultura rudimentar. Neste vasto território, os homens do período arcaico se adaptaram de formas diversas, de acordo com as áreas geográficas onde se encontravam. Sul do Brasil: No sul do Brasil desenvolveram-se duas Tradições chamadas Umbu e Humaitá. Esses povos eram caçadores-coletores, praticando talvez uma agricultura de subsistência (coivara). Talhavam ossos e pedras para transformá-los em ferramentas. Planalto Central: Sobre o planalto central e a região Nordeste, caraterizada por savanas semiáridas, desenvolveram-se várias Tradições de pinturas rupestres, entre os anos 7 mil e 4 mil a.C. Dentro elas a Tradição Planalto que tem como característica pinturas monocromáticas representando animais (zoomorfos); estas obras rupestres se encontram em perto de cem abrigos e cavernas, hoje preservadas e protegidas. Já a Tradição Nordeste, de características semelhantes, com pinturas monocromas zoomórficas, possui representações antropomórficas (figuras humanas). A Tradição São Francisco, datada do final do período arcaico (2.500 a.C.), que se desenvolveu ao longo do Rio São Francisco, é dominada por símbolos geométricos monocromáticos e policromáticos. (3). Litoral meridional: Na costa meridional do Brasil atual desenvolveu-se a surpreendente Tradição dos Sambaquis. Um Sambaqui (termo de origem Tupi que significa “montanha ou depósito de conchas”) é um amontoado de conchas e ossos de peixes. Esses casqueiros foram sendo construídos, em sucessivas camadas, por diversos grupos humanos que habitavam vários pontos do litoral brasileiro, especialmente no sul do país. Com o fim do período glacial cerca de 12 mil anos atrás e a lenta e gradual elevação do nível do mar, o litoral que se estende do atual Estado do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul tornou-se mais acessível e passou a ser ocupado por povos que se alimentavam de frutos do mar. Embora também caçassem pequenos animais (macacos, antas, gambás, tartarugas, por exemplo) e colhessem frutos silvestres, esses povos comiam principalmente peixes e moluscos (ostras, mexilhões, berbigões etc.). Como essa fonte de alimentos nunca se esgotava, eles permaneciam durante milênios no mesmo lugar, perto das praias ou dos mangues. As conchas dos moluscos eram abertas no fogo e abandonadas no local, acumulando-se ao longo do tempo; o consumo era tão grande e regular que o acúmulo das conchas acabou se transformando em pequenas colinas. A altura média desses sambaquis era de 5 a 10 metros, mas alguns deles chegaram à incrível altura de mais de 25 metros, ou seja, o equivalente a um prédio de 9 andares! Esses morros de conchas tinham geralmente uma forma alongada, com comprimentos variando de 50 até 200 metros e larguras entre 20 e 60 metros. O volume médio dessas colinas era de cerca de 5.000 m³, mas algumas chegaram a centenas de milhares de m³! 10 A formação dos sambaquis começou há cerca de 8-9 mil anos, até a chegada dos índios TupiGuarani à região por volta de 2 mil anos atrás. Pouco se sabe sobre o intervalo de tempo entre o início da formação de um depósito de conchas e o abandono do sambaqui constituído. No entanto, escavações conduzidas por arqueólogos sugerem que grandes sambaquis como o Jabuticabeira-II, em Jaguaruna (SC), esteve ativo pelo menos durante mil anos. Esse sambaqui é um dos mais recentes, já que a formação do sitio teria começado cerca de 2.900 anos atrás, e foi abandonado há cerca de 1.860 anos atrás, no século II. Sambaqui na praia de Ypuã, Laguna, SC. (Autor da foto: Joannis Mihail Moudatsos, 2013) (iii). Durante muito tempo, os pesquisadores imaginavam que os sambaquieiros viviam em cabanas instaladas em cima desses morros, sobre o próprio lixo, hipótese defendida por muitos arqueólogos. Conchas, ossos de peixe, lascas, ferramentas, esqueletos e buracos de estaca, todos esses elementos misturados seriam indícios de que esses homens não separavam os ambientes destinados a ações como comer, despejar o lixo, sepultar os mortos. Recentemente, no entanto, os estudiosos fizeram novas pesquisas, mudaram de ideia e apontaram outros cenários. De acordo com um deles, os sambaquieiros poderiam viver em uma parte específica dos morros e depositar os restos de comida (ossos e conchas) em outra. Outras pesquisas mais recentes demonstram que as conchas poderiam estar presentes em um determinado local por diferentes razões, não apenas como restos de alimentação; ao contrário, os sambaquis poderiam ter sido marcos intencionais, certamente imbuídos de uma carga simbólica significativa, com grande visibilidade e destaque na paisagem. Esses novos estudos mostram também que os sambaquis serviam para rituais, particularmente os ritos do sepultamento. As escavações conduzidas pela arqueóloga Maria Dulce Gaspar no extenso sambaqui Jabuticabeira-II sugerem que ele era usado apenas como cemitério. Calculou-se que estejam ali aproximadamente 43.800 corpos enterrados, ou seja, 1.575 sepultamentos por geração de 25 anos durante 700 anos, período estimado durante o qual o ritual de sepultamento teria sido realizado nesse sambaqui. Com uma altura variando entre 6 e 9 metros, um comprimento de cerca de 350 metros e uma largura de 150 metros, o Jabuticabeira II tem um volume calculado em 320 mil m³; as escavações realizadas mostraram uma densidade de sepultamentos de um corpo para cada 1,4 m³, de onde foi estimado o número de 43.800 sepultamentos ((4)). Hoje, quase não existem mais sambaquis intactos no Brasil. Isso aconteceu por vários motivos: os mais antigos sambaquis foram cobertos pelo mar como resultado da elevação do nível dos oceanos após o fim da última glaciação (aprox. 12 mil anos antes do presente - AP). Adicionalmente, quando os colonizadores portugueses e espanhóis povoaram as regiões meridionais do Brasil, eles utilizaram o material dessas montanhas de conchas para transformálo em cal, com o qual quase todas as casas daquela época foram construídas. Esse material foi também utilizado para pavimentar as ruas das vilas e pequenas cidades da região. Ainda hoje 11 existem pequenas “fábricas” de cal instaladas ao lado de alguns dos grandes sambaquis. Os raros sambaquis intactos se encontram nos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e São Paulo (5), ((6)), ((7)). Duas fotos de um mesmo sambaqui, (Figueirinha I) localizado em Jaguaruna (SC). A imagem à esquerda mostra o sambaqui ao longo do seu comprimento, de frente para o mar; a imagem à direita mostra o sambaqui ao longo da sua largura. A altura máxima é de 18 metros; podemos estimar uma largura de 5060 metros e um comprimento de aproximadamente 70-80 metros, que resultaria num volume de cerca de 25-30.000 m³. (iv) 2.2 As culturas da cerâmica A cerâmica apareceu por volta de 2.500 anos antes de nossa era, quase simultaneamente em todo o território brasileiro. O homem dos primórdios da cerâmica se tornou não só um caçadorcoletor, mas também um agricultor. No entanto, a mandioca e o milho só aparecerão mais tarde, trazidos pelas poderosas ondas migratórias dos Tupi-Guarani. Novamente, culturas e Tradições diferenciadas apareceram sobre este imenso território. Planaltos do Sul Nos planaltos do sul do Brasil e do Uruguai, se desenvolveu a Tradição Taquara-Itararé. As oleiras desta Tradição fabricavam vasilhas de fôrma simples e pequenas, com cerca de 20 a 30 cm de diâmetro, algumas pouco profundas e abertas, outras com até 40 cm de profundidade e paredes verticais. Os fundos eram sempre arredondados, e as paredes apresentavam por vezes furos de suspensão ou pequenas alças. As vasilhas eram geralmente de cor escura, raramente decoradas ao norte (de Santa Catarina até Itararé em São Paulo). Porém, as cerâmicas meridionais, como as do Rio Grande do Sul e das Missões argentinas, apresentavam muitas vezes uma superfície delicadamente decorada com impressões ponteadas, incisas ou beliscadas (8). Vasilhame cerâmico relacionado à Tradição Arqueológica Taquara-Itararé (Museu Paranaense, Curitiba, PR) Autor da foto: Zig Koch (v). 12 Esses povos da Tradição TaquaraItararé eram os ancestrais dos atuais povos Kaingang e Xokleng, conhecidos também como Povos das Casas Subterrâneas. Isso porque para protegeremse do inverno rigoroso que castigava as elevadas regiões do sul do Brasil, construíam suas casas de forma enterrada (subterrânea), mantendo-as, assim, protegidas das nevascas e dos ventos fortes e gelados que cortam o planalto. O teto era apoiado sobre estacas: uma estaca principal no centro, que descia até o chão da casa, e estacas laterais que irradiavam do mastro central e se apoiavam na superfície do solo, na parte externa. Esse teto ficava pouco acima do nível do chão, garantindo ventilação, iluminação e passagem para os habitantes. Eram verdadeiras casas circulares, escavadas na terra. Suas dimensões eram variáveis, medindo entre 2 e 13 metros de diâmetro, e uma profundidade de 2,5 até 6 metros. A terra escavada era disposta em anel ao redor do buraco, com o intuito de desviar as águas pluviais. Em vários sítios arqueológicos encontram-se casas subterrâneas isoladas, mas também é comum encontrar conjuntos dessas casas formando verdadeiras aldeias de 5 a 10 casas, ou até mesmo de mais de 20 casas num mesmo lugar. O espaçamento entre essas casas varia de 1 a 10 metros (9). A habitação em casas subterrâneas perdurou por muitos séculos, provavelmente por um milênio; algumas dessas casas subterrâneas ainda existiam e eram ocupadas na chegada dos colonizadores portugueses e espanhóis que as chamavam de casas de bugre 7. Casa subterrânea (vi) Brasil central e costa do Sudeste A cerâmica também apareceu no centro do Brasil e na sua costa central, entre 4 a 5 mil anos atrás. Um exemplo deste período é a Tradição Una, cuja cerâmica não era decorada; no entanto, estes povos nos deixaram lindas pinturas rupestres. As análises e interpretações atuais levam a crer que esses povos já possuíam uma agricultura relativamente elaborada. 7 O termo “bugre” é pejorativo. O Grande Dicionário Aurélio diz: termo utilizado para designar o índio perigoso e endurecido, mas também inculto, no sentido de bárbaro, sem leis, enganador. A palavra vem, através do francês “bougre”, do latim medieval bulgarus, (búlgaro), seja: herético, não-cristão. No século XIX e início do século XX eram chamados bugreiros os caçadores de índios Kaingang e Xokleng do sul do Brasil.
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